Não é intenção do autor manifestar qualquer sentimento de discriminação sexual, racial, moral ou outras que tal. No entanto, sintam-se à vontade para produzir qualquer insulto à minha pessoa, desde que devidamente fundamentado.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

George no país das paranóias



2 anos depois de ter começado esta estonteante aventura, o George vai finalmente desvendar os mistérios que o envolvem. Para já, os 14 capítulos que antecedem o grandioso final.

Capítulo 1

Contemplava-os com olhos envelhecidos, cheios dessa alma de garoto de 15 anos, enquanto entravam no relvado. Daqui vejo-os distantes, como os anos que se passaram. O calor da multidão lembrava-me África. E vinham vendedoras de mangas – a Marialva -  doce como as mangas que vendia, e as mangas, ainda verdes, recordam-me o relvado desta reminiscência. Como é bonito o futebol.


- duas bancadas abaixo, na pedra gelada, dois fulanos debatiam

É a guerra civil de Espanha, não vês que é a guerra civil de Espanha?! Picasso era assim, paranóico. O cheirinho a paelha chamou-me à cozinha. D. Eulália, de pés descalços, fazia ecoar no soalho da casa o peso dos seus 70 anos. O Céu era como o de África naquela tarde de futebol. Duas bilhas, um conto de rei, e pessoal à pancada na TV.
A aurora despontou no dia seguinte. Raios de sol penetravam a sombra das árvores que se erguiam ao fundo do jardim. Era terça-feira e acordei com comichão na gaita. Levantei-me, cocei-me, e vi duas moscas a falecer depois de um voo desenfreado – o último das suas vidas – contra o vidro daquela janela daquela casa que ficava ante aquele jardim onde se encontravam as árvores penetradas pelos raios de sol da aurora. A vida é assim mesmo. Pelo menos a das moscas.


Capítulo 2

Os dias sucediam-se, uns após outros. As semanas também, acabava uma, logo vinha outra. O mesmo se passava com os meses. Os anos já demoravam mais um bocadinho...Viera um padre, na quarta-feira após o desastre, fazer as honras fúnebres dos malogrados insectos. Que descansem em paz.
Quantas vezes olhei para o céu dessa África negra. Foram 7. A morte acontecia como acontece outra merda qualquer. Uma folha solta-se de um ramo, voa até poisar, para de novo levantar voo e voltar a poisar. Ainda sentia comichão na gaita, por isso entrei, para dentro, e lá estava D. Eulália a cantarolar em japonês – velho hábito tinha esta senhora -, muito culta por sinal. 
Três quartos de hora mais tarde, ainda durante essa tarde, que se fazia já bem tarde, saí, para fora. Estava um sol de fim de tarde, mas não era muito tarde, pelo menos não tão tarde como pensava. Voltei a entrar, para dentro, porque afinal ainda tinha tempo. Peguei no livro do Bukowski – que era meu, mas quem o tinha escrito tinha sido ele -, e resolvi meditar um bocado sobre o seu Saber. Dizia ele, na página 47: “ George começou a soltar gemidos debaixo do lenço, em cima do fogão da sala. Marty tirou os slips de Rutie. Puxei Dawn para mim. Era bela e jovem e tinha alguma coisa lá dentro dela. Podia apaixonar-me outra vez. Era possível. Começámos a beijar-nos. Caí ao chão dentro dos seus olhos. Depois levantei-me e comecei a correr. Sabia onde estava. Uma barata e uma águia estavam a fazer amor. O tempo era um louco a tocar banjo. Continuei a correr. O seu longo cabelo caiu-me sobre a face. – Hei-de matar toda a gente! – gritou a pequena Anna. Eram três horas da manhã e ela ainda estava a barafustar dentro da gaiola”.


Capítulo 3

Pousei o livro. Enchi meio copo de whisky – a outra metade ficou totalmente vazia -, acendi um cigarro. Não o fumei, achei apenas que ficava bem neste contexto acendê-lo. Apaguei-o – o contexto já é outro, e as pessoas desta narrativa não apreciam o fumo -, fui abrir a porta que, não estando batida, tinha sido batida. Bateram nela e eu abri-a.
- Como estás George?
- Olá Christine – respondi.
- A D. Eulália disse-me que estavas de saída, venho interromper?
- De saída?! Ah...pois. Bom, estava. Pensei que estava na hora de sair, mas afinal o tempo é um louco a tocar banjo. Para onde iria eu?
- Voltaste a beber, George?
- Nunca deixei a bebida Christine. Desde que me deixaste a minha vida é isto, beber e fazer funerais a insectos. Morrem às centenas todos os dias. Dão muito trabalho. Estou a ficar velho e com comichões na gaita. E tu, como tens passado?
- Conheci o amor da minha vida.
- Quem é o agoirado? É rico o gajo? Só pode!
- Não. Chama-se Sarah e é campeã nacional de rugby.
- Vai-te embora. Ao sair encosta a porta. Antes de ires dá dois saltos, rebola-te no tapete de entrada, parte o aquário que está nessa mesa e espreita pela janela. Se vires lá fora que ainda é dia, põe-te no caralho. Se for noite volta aqui, acende-me um cigarro e coça-me a gaita – à noite é quando tenho mais comichão -, depois beija-me de fugida e foge de seguida, senão mato-te.
Christine fugiu de seguida - era noite. Ao passar na cozinha disse adeus em japonês à D. Eulália.
ZZZZZZzzz......splashhhh! À noite é quando elas morrem mais.
Sorvi mais um bocado de whisky, apaguei o cigarro e deixei-me adormecer. No dia seguinte havia mais um funeral e a minha mulher era lésbica. 


Capítulo 4

Eram 3 horas da manhã. Acordei sobressaltado com um sonho estranho. Vou relatá-lo:
Estava eu a preparar mais um funeral quando tocam à campainha. A D. Eulália estava ocupada a ensinar cantigas de embalar japonesas a um estranho de bigode farfalhudo. Fui eu quem abriu a porta. Do lado de fora estava um vendedor de opiniões.
- Boa tarde. – disse ele.
- Não gosto do seu aspecto, o que quer? – respondi.
- Estou a vender opiniões. Sabe, é um negócio com futuro. Eu não tenho uma que seja inteiramente minha, mas adapto-me muito bem e vendo-as com facilidade. Quer comprar?
- Parece-me um negócio da treta. Mas olhe, deixe ficar o seu ar pretensioso aí fora, descalce-se, bata-me continência e entre, para dentro, com um salto de pés juntos sem flectir os joelhos. É capaz?
- Ora essa, claro que sou! Afinal do que é que eu não sou capaz?
Mal acabou de dizer isto, ainda com um dos pés calçados, estende-se-me ao comprido no tapete de entrada.
- Está bem homem? – perguntei eu, preocupado.
- Não sei bem – respondeu - , é que eu ainda não tenho opinião formada sobre mim, por isso não sei do que sou capaz. Mas sou um excelente vendedor de opiniões.
- Vá, deixe-se lá de tretas e venda-me lá alguma coisa. E rápido, é que ainda tenho uma mosca para enterrar e a família não tarda nada está aí a zumbir.
- O Sr. faz funerais a moscas?
- Elas não param de morrer, que quer que lhes faça?
- Deve ser do cheiro a álcool barato que se faz sentir por aqui.
- Acha mesmo? E o Sr. percebe de moscas é?
- Não sei bem, esta opinião não é minha. Mas já a vendi e usei uma ou duas vezes e há quem a use de vez em quando. Encontrei-a na wikipedia. É muito boa esta opinião, e as pessoas que a usam fedem a prestígio que é uma coisa louca.
- Humm...cá para mim você é um charlatão.
- Não duvide das minhas capacidades. Olhe, esqueça lá essa do álcool. Eu tenho aqui um pack de opiniões que, se o levar, entra directamente para o top 5 dos opinion makers.
- Mostre-me lá isso então.
- Está preparado? Olhe que isto é do melhor que anda no mercado. Não há argumento para isto. Aqui vai: o casamento gay já foi aprovado em Portugal ( estamos a evoluir, pois a seguir vem a liberalização das drogas, a eutanásia e afins)...
- Eh lá! – disse eu – mas isso é tão vulgar. Olhe, estou a começar a ficar com comichão na gaita e está ali um fulano de bigode farfalhudo a apalpar as nalgas da D. Eulália. Estou com um bocado de pressa. Não me vai vender nada, as suas opiniões são muito fraquinhas. Mas como eu sou boa pessoa e estou com comichão na gaita, posso ficar com as suas opiniões e em troca faculto-lhe meia dúzia de acentos graves, alguns agudos; troco-lhe uns “Cs” por uns “Ss” e ainda lhe dou a oportunidade de me vender uma cana de pesca. Tem por aí alguma?
- Não, mas aceito as suas ofertas. Sabe, estava mesmo a precisar do que me está a oferecer. Assim já vou poder incluir nas minhas opiniões algumas coisas novas, que desconhecia até agora.
- Vá-se lá embora. Pena não ter aí uma cana de pesca. Não serve para nada homem! Agora saia, dê um mortal à retaguarda, bata palmas e volte sempre.

Adormeci eram quase 4 da manhã. Fiquei a pensar naquele sonho estranho. Pareceu-me tão real. Até as comichões na gaita estavam lá, e as moscas, os funerais, a D. Eulália.

No dia seguinte éramos 3 à mesa: eu, a D. Eulália e o Juarez (o do bigode farfalhudo).
A minha vida nunca mais seria a mesma...


Capítulo 5

A torneira pingava. O luar desaparecera. A luz do sol coçava-me a fronha. Levantei-me da cama e fui fechar a torneira.
- George!! – chamou a D. Eulália.
- Estou a caminho – respondi.
E fui a caminho. Enquanto ia, pensava. Enquanto pensava, ia. Fui, pensei. Como são belas as manhãs enquanto se vai e se pensa. Cheguei. O pequeno-almoço estava servido. Cocei a gaita discretamente – a D. Eulália não apreciava muito aquele gesto – e disse bom dia ao estranho de bigode farfalhudo. Antes de me responder, virou-se para D. Eulália e segredou-lhe qualquer coisa em japonês, depois virou-se para mim nestes termos:
- George, chamo-me Juarez e sei de cor as letras das músicas dos Delfins.
Fiquei boquiaberto. Mas que homem tão erudito. Que bom é sentarmo-nos à mesa e podermos, num segundo, pensar em paelha, Cristo, sombreros, golfinhos e outras putarias do género.
Passamos uns belos momentos matinais em amena cavaqueira. Falamos dos funerais das moscas, do clima no México, da performance sexual da D. Eulália, dos azulejos do metro do Porto e tantos outros temas fascinantes sobre os quais não me vou pronunciar.
Voltei para o meu quarto – a mosca que falecera na véspera esperava por um digno funeral -, lembrei-me de África, de gnus, de ouro, do capitão Jonh e de uma casa de alterne em Coruche. A vida é mesmo assim, cheia de recordações que nos invadem e nos fazem esquecer o presente.
Depois do funeral voltei à cozinha. D. Eulália chorava – em japonês - , Juarez tinha partido. Chorei. Parei de chorar. Voltei a chorar. Joguei damas com a D. Eulália. Voltamos a chorar. É incrível como algumas pessoas marcam as nossas vidas. Juarez e o seu faustoso bigode deixavam saudades.
Encontramos uma carta de despedida por ele deixada. Dirigia-se a nós neste termos:
“ D. Eulália, George: Determinadas situações provocam sofrimentos inevitáveis com os quais não estamos habituados a lidar. As questões que derivam destas problemáticas são, muitas das vezes, incontornáveis. Dada a delicadeza do assunto em questão, peço-vos que, de consciência livre, tomem uma posição de neutralidade face à controvérsia da presente narrativa. Como tal, é meu desejo que se esqueçam da minha pessoa, e de mim também. Vá, de ambos os dois.
 Despeço-me com relativamente pouca saudade,
Juarez”

Cocei a gaita como nunca tinha coçado até então – estava nervoso.
Aquele homem dera-me uma nova perspectiva da vida.




Capítulo 6

Abracei-me a ela com tanta força que até soltei uma bufa. Sentia-me mesmo bem assim, agarrado a Christine, naquele início de madrugada. Ela, pressentindo o meu calor, voltou-se para mim. Voltei a cair dentro dos olhos dela. Como era bela e moderadamente boa.
- Ah Christine...
Acordou!
- George!? Estás acordado, querido?
- Não consegui adormecer, estou com comichões na gaita. Já sabes que é à noite que me ataca mais...
Christine olhou para mim como quem olha para um gajo com comichões na gaita e disse:
- Queres efectuar o amor comigo? Há tanto tempo que não o executamos, sinto necessidades, George. Ama-me toda, ama-me como se não houvesse amanhã, ama-me como quiseres, ama-me como te for possível amares-me, mas ama-me. Amas? Comes? Fodes?
Não me deixou responder. Agarrou em mim e começou a passear a língua pelo meu corpo. Não retorqui! A porta do quarto abriu-se.
- Sarah? Que fazes aqui? – perguntei eu, espantado, enquanto coçava a gaita.
- Também quero festarola. Saí agora do treino. Quero brincar.
- Anda meu amor – disse Christine para Sarah – estamos mesmo a começar.
Quando dei por mim havia duas línguas, quatro mãos, o mesmo número de nalgas e de mamas...era tudo a dobrar. Elas agarravam-me enquanto se agarravam, torciam-me enquanto se lambiam, faziam de mim o que queriam. Senti-me imóvel, quieto, frio e, no entanto, viajava de corpo em corpo, tremia no calor delas.
Olhei-me.
Não tinha perninhas, não tinha bracinhos, nem a gaita, nem as comichões. Sem cabeça, sem boca, sem língua, sem nariz. Não era humano.
- Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhh – gritei, aterrorizado.
Acordei!
Estava a ter um pesadelo.
Eu era um Dildo e a minha mulher continuava lésbica.


Capítulo 7

Não dormi mais nessa noite. Antes homem acordado do que dildo a dormir!
A manhã tardou a chegar, mas chegou - vinha atrasada. Chovia muito lá fora, cá dentro só um bocadinho. As bacias amparavam as gotas que caíam ininterruptamente pelos cantos do quarto. Aquilo lembrou-me África. Não que chovesse muito por lá, mas as bacias que amparavam a chuva do meu quarto já eu as tinha visto a acomodar mangas fresquinhas, cheias de vida – alegre retrato, distante. As bacias são mesmo assim, admiráveis recipientes que ora nos alegram, ora nos entristecem.
Foi com este pensamento que peguei no telefone e marquei o número da Christine.
- Estou sim? – Disse a voz do outro lado.
- Christine, preciso falar-te. – Disse a voz do lado de cá.
- Que se passa George!? Está tudo bem com a D. Eulália? Pareces-me amargurado.
- Amargurado?! Ah...estou, um pouco. Emocionei-me com um pensamento sobre bacias e deixei-me levar pelos sentimentos. Isto passa. Olha lá Christine, tu ainda és lésbica?
- Oh George, francamente!
- Que foi? Foda-se. Perguntar não ofende, porra.
- Não é isso, George. Parece que me estás a perguntar se eu ainda sou sócia da Blockbuster, ou se ainda pinto as unhas de vermelho, ou se ainda tenho o mesmo carro. Coisas banais, entendes? Que falta de delicadeza a tua. Não se trata de “ainda” ser lésbica, percebes? É-se, pronto!
- Falas assim porque nunca foste uma boneca insuflável a ser usada por dois gajos. A realidade estou pronto para aceitar, agora o que me dá comichão na gaita são os pesadelos que...  
- Boneca insuflável? – interrompeu ela - Estás a falar de quê, George? Quanto andas tu a beber?
- Olha, tenho de desligar. A PT só me dá chamadas de borla até às 9 da manhã. São 09:03. Não vales o que estou a gastar nestes 3 minutos.
Desliguei.
Voltei a ligar-lhe.
- Estou sim?
- E agora, ainda és lésbica?
- VAI À MERDA GEORGE!! És um canalha, deixa-me em paz de uma vez por todas. Bem o Juarez me tinha avisado que...
- QUEM?! Quem é que te avisou do...
A chamada caiu. Ela tinha-a feito cair. Tentei ligar-lhe montes de vezes. Não me atendeu.
Juarez, Juarez, Juarez... ela mencionou o nome dele, tenho a certeza! Como é que ela o conhecia? De onde? E o que poderá ter ele a ver com isto tudo?
A D. Eulália, vou falar com a D. Eulália...


Capítulo 8

Atravessei rapidamente o corredor escuro que me separava da cozinha. Olhei à minha volta e constatei que duas moscas haviam ali falecido. Jaziam imóveis ao pé de um jarrão que trouxera de África - simples objecto decorativo para mim, primeira morada na eternidade para aqueles infelizes insectos. Pus o coração de parte e retomei o caminho da minha inquietude. Precisava de falar com a D. Eulália.
Entrei na cozinha e encontrei-a a fazer o pino junto ao fogão.
- D. Eulália, nessa posição de nada lhe serve usar saia. Preciso falar-lhe.
- Oh George, estou a ficar velha. Precisava de uma nova perspectiva da vida e resolvi virar-me ao contrário. Sinto-me tão mais feliz assim. Às vezes é preciso virar tudo do avesso para encontrar um sentido para a vida.
- Com efeito. Olhe D. Eulália, preciso muito que seja honesta comigo. Vou ser directo: quem é o Juarez e o que é que ele tem a ver com as nossas vidas? A Christine mencionou o nome dele ao telefone, como é que ela o conhece?
- A Christine falou no Juarez? É impossível. Impossível! Não quero imaginar sequer que isso tenha acontecido. É impossível. Não...ele não fazia uma coisa dessas. Ele prometeu-me que não a ia ver antes de voltar para o México e...
- Diga-me o que se passa de uma vez por todas. Estou a começar a ficar com comichão na gaita. Quem é esse homem?
As lágrimas apoderaram-se dos olhos de D. Eulália. Começavam já a correr-lhe pela testa abaixo e a formar pequenas poças junto das mãos firmemente coladas ao chão. Nunca tinha visto ninguém chorar daquela maneira. Pessoas viradas ao contrário exteriorizam as emoções de uma forma magnífica.
- George – soluçou ela – o Juarez é um travesti mexicano ligado a associações gays e lésbicas de todo o mundo. Conheci-o no Japão há muitos anos num espectáculo de bailarinas exóticas. Telefonei-lhe há umas semanas para saber como estava, sentia saudades dele. Não é todos os dias que se encontra um travesti mexicano que sabe falar japonês, por isso ficamos grandes amigos e nunca perdemos o contacto um do outro. Ele preocupou-se sempre muito comigo e a dada altura dei por mim a desabafar com ele o que te tinha sucedido. Contei-lhe que a Christine te tinha abandonado porque descobrira que era lésbica, falei-lhe da tua dedicação às moscas e da comichão na gaita que te acompanha desde criança. Ele manifestou-se particularmente interessado na Christine e...bom...quando dei por mim estava aqui, na nossa casa, a apalpar-me as nalgas. Ele queria levar a Christine embora, George! Ele queria qualquer coisa com ela...
- Vou à casa da Christine – respondi, apressado -  preciso saber o que se está a passar. Além disso ela ficou-me com um disco dos Carmina Burana que tenho saudades de ouvir.  
Saí de casa com o pensamento no 2001 Odisseia no Espaço. Mas que belo aproveitamento é feito do tema “fortuna imperatrix mundi: O Fortuna” neste filme. A imagem de um grupo de primatas à pancada levou o meu pensamento de volta a África, o que por sua vez me lembrou do jarrão que de lá trouxera e pusera no corredor onde jaziam as moscas que aguardavam um digno enterro. É assim a vida, repleta de pedacinhos de memórias que nos vão construindo a existência.
Cheguei à casa da Christine. A porta estava aberta. Cocei a gaita e entrei, para dentro, e chamei por ela.
Não obtive resposta.
Percorri a casa e subi as escadas que davam para o quarto. Bati à porta – embora ela nada tenha feito para que nela batesse – a violência acontece assim, por uma merda qualquer. Do outro lado ninguém respondeu. Voltei a chamar.

Silêncio.

Estranho – pensei.
Abri a porta e gritei horrorizado com o cenário que se estendia diante dos meus olhos.
Christine jazia, morta, envolta no seu próprio sangue.
Em cima de uma pequena mesa, um sombrero e uma tanga.

- JUAREZZZZZZZZZZZZZZZ


  

Capítulo 9

Passaram duas semanas desde aquele fatídico dia. A tragédia abateu-se sobre mim de uma forma absolutamente devastadora e a minha esperança na raça humana dissipava-se a cada dia perante a insensibilidade e brutalidade dos meus pares. O mal espera-se sempre que venha daqueles que não conhecemos, e não daqueles com os quais partilhamos a vida espontaneamente. Assim fora com D. Eulália, que varrera sem qualquer sentimento de humanidade as moscas que haviam falecido no corredor lá de casa. Justificara-se com o facto de ainda não estar habituada a tratar dos assuntos da casa de pernas para o ar, e que o domínio de uma vassoura naquela posição não era tarefa fácil, tendo por isso arrastado os malogrados insectos porta fora sem que tivesse dado conta.
Perder uma mulher para a morte que já havia perdido para a homossexualidade estava eu pronto para aceitar, agora aceitar de ânimo leve que se despojem daqueles pequeninos defuntos só porque a nossa vida está virada ao contrário, não me parece razoável.
- Mais um whisky – pedi eu ao barman.
Dá-me para beber quando falecem moscas e esposas. A julgar pelo ambiente que ali imperava, a tragédia não se abatera apenas sobre mim.
O comprido balcão do antro onde estava metido amparava vidas afogadas em álcool. A um canto, um desgraçado sem graça gaguejava piadas agarrado a uma prostituta anã. Achava-se o maior – e era, de facto, pelo menos maior que a puta, mas mais pequeno do que a puta com que estava. Do outro lado do bar, três porquinhos-da-índia de tamanho considerável formavam a plateia do espectáculo que decorria. Uma bela virgem nórdica tocava Cítara de uma forma absolutamente estonteante. Estava naquela altura a fazer um cover da “Pussy”, dos Rammstein levando a plateia à loucura  – que guinchava em delírio.
- Erm...Desculpe – disse um homem de meia-idade que acabara de sentar-se ao balcão. Importa-se que me sente ao pé de si?
- Ora essa – respondi, enquanto coçava a gaita – faça favor.
Que tristes eram aqueles olhos, que peso carregava consigo, que desgostoso era aquele semblante. Pedi dois whiskys e meti conversa.
- Vejo que não sou o único a quem a vida fodeu a vida.
- Oh amigo, nada do que lhe tenha acontecido pode ser pior que o meu tormento – retorqui.
- Não diga isso. O que pode ser pior do que ter ficado viúvo de uma lésbica assassinada por um travesti mexicano e não saber dos cadáveres de duas alminhas idas deste nosso mundo para sempre?
- Oh...isso não é nada comparado com o que eu sofri. Você ainda tem tempo e vida para recuperar dessa perda. A mim roubaram-me a alegria de viver há já muitos anos. Não conseguirei nunca superar o que me aconteceu, morri por dentro, para sempre.
- Mas o que foi que lhe aconteceu? Que tragédia o deixou nesse estado?
O homem estava já lavado em lágrimas, vermelho, com as mãos agarradas ao cabelo, puxando-o em total desespero...
- Conte-me o que se passou homem, vá lá. – insisti, enquanto coçava agitadamente a gaita.
- A MINHA EX-MULHER LEVOU-ME A UM CONCERTO DOS DELFINS! – berrou ele cheio de raiva e dor e ranho no nariz – DOS DELFINS, ENTENDE??
E saiu de rompante, deixando atrás de si um rasto de monco e tristeza.
Aquilo lembrou-me a conversa que tivera semanas antes com o Juarez. Ela tinha-me dito que sabia as letras todas de cor dos Delfins. A raiva apoderou-se de mim. De repente, a ânsia por justiça invadiu-me e senti que aquele era o momento de agir.
Precisava de encontrar o Juarez. Precisava de acabar com um dos maiores fãs do grupo que arruinou a vida daquele desconhecido. Tinha que vingar a morte da Christine e honrar as moscas que, devido às suas acções, não tiveram um enterro digno.

México, aí vou eu...



Capítulo 10

Saí do bar eram quase 3 da manhã. Do desgraçado com quem tinha conversado, nem sinal! Atrás de mim saíram os três porquinhos-da-índia, completamente embriagados. Iam na direcção oposta à minha, e ao longe ainda os avistei a montarem-se uns no outros. Era um menáge bem colorido aquele! Entraram num táxi e foram à vida deles.
Torneei o parque à luz escassa da Lua. Aqui e ali, casais de namorados ávidos de amor tocavam-se na penumbra. Ao passar perto de um deles, o gajo levanta-se mesmo com cara de quem se vai peidar. Não se peidou e eu continuei o meu caminho.
O parque da cidade recebia o circo nesse fim-de-semana. Ainda estava aberto. Ao fundo, numa das tendas, um gajo berrava:
- Venham, venham! Por 3 euros vejam Jesus Cristo em patins. Venham!
Aquilo chamou-me a atenção. Peguei nos 3 euros e paguei ao gajo. Perguntei-lhe:
- Ouça lá, aí dentro está mesmo o Cristo em patins?
- Veja por si mesmo – ladrou ele.
Entrei, para dentro, e cocei a gaita. Fico com comichões quando estou perto de gente que não existe, e mesmo quando estou à beira de quem existe.
La dentro cheirava a mijo. Sete gajos de aspecto miserável olhavam para uma jaula onde um fulano de barbas, de tanga vestido e coroa na cabeça patinava no gelo de uma forma absolutamente magistral. Aplaudi o artista e passei a acreditar em deus. Afinal o charlatão cobrava-se, mas Jesus existe. E patina!
Saí dali cheio de fé e comichão na gaita, revigorado para empreender a tarefa que tinha em mãos. Tinha que encontrar o Juarez.
Dirigi-me para casa. O silêncio da noite era ensurdecedor. Lembrei-me de África, do seu silêncio, das caçadas ao elefante com o capitão Jonh, do marfim e do Mário Soares. Como era bonita a felicidade dos senhores de avental enquanto dançavam a “I Remember the Time”, do Michael Jackson. Até Nefertiti bailava no túmulo!
Cheguei a casa e deitei-me.


Capítulo 10 e um terço

Na manhã seguinte acordei e pus-me a matutar no impacto que a imagem de Cristo a patinar produziu em mim. Levantei-me e acendi um cigarro. Eram 9 e meia e eu estava descalço.
Calcei-me e dirigi-me para a cozinha. D. Eulália lá estava, de pés no ar e a assobiar.
- Bom dia George – saudou-me ela – a que horas partes?
- O voo é às 19 – respondi.
- Vou contigo, George. Não te posso deixar ir sozinho. Fui eu que meti o Juarez nas nossas vidas. Quero encontrá-lo tanto quanto tu!
- Está bem – respondi – mas olhe, não a deixam embarcar nessa posição. Tem de virar-se ao contrário.
- Hum...está bem. Eu já estava a pensar virar-me há algum tempo. Quando estou no banho molho sempre o cabelo nesta posição, e há dias em que não quero molhá-lo. É chato. Está combinado então, vamos juntos para o México encontrar aquele filho da puta!
- Vá, faça a mala então – respondi enquanto coçava a gaita.
Ela saiu e eu fiquei.
Apaguei o cigarro e espreitei pela janela. O sol brilhava no céu.
Que belo dia! – pensei.
Saí, para fora, e a brisa fresca da manhã tocou-me nas fuças. Lembrei-me do Chinaski e da história que ele me tinha contado sobre um lutador de boxe americano. “O gajo era um bêbado pá” – dizia ele, empolgado – “ia combater a cair de bêbado, e ganhava sempre, o cabrão! Franzino, não podia com um murro, mas bêbado era o maior. Fodia-os a todos!”
Ah Chinaski – pensei – és um mentiroso do caralho.
Voltei a entrar, para dentro, e fui-me encher de whisky. Pela manhã é quando sabe melhor.
Dormi o resto da manhã.


Capítulo 11

O dia já ia a meio quando acordei. Ao longe ouvia um burburinho estranho. O som vinha da sala. Aproximei-me e comecei a ouvir vozes, uma era da D. Eulália, as outras duas não reconheci.
Estranho – pensei.
Abri a porta e todos se voltaram para mim. Sentados no sofá, dois homens de meia-idade com cara de quem não fodiam há um bom tempo olhavam-me com cara de dois homens de meia-idade que não fodiam há um bom tempo. Tinham vestidos fatos negros, camisa negra, gravata negra, meias negras, tudo negro. Talvez fosse assim a vida de quem não fode há muito tempo – negra! Carregavam um olhar preocupado e estavam a beber um chá que a D. Eulália lhes tinha oferecido.
- Sente-se, George – disse um deles.
Sentei-me.
- O meu nome é Harris. Sou do FBI e tenho uma hérnia, um pónei e gosto de corridas de cavalos. Sabemos que tem uma viagem marcada e sabemos ao que vai. Vimos aqui impedi-lo.
- O quê??! Vêm impedir-me? Mas por que caralho é que vocês acham que uns merdas com a vossa fronha me vão impedir de fazer seja o que for? – respondi coçando vigorosamente a gaita.
- Acalme-se. Nós estamos do seu lado. Só queremos ajudar.
- George – disse a D. Eulália –, o Harris e o Jacob são amigos da família. São um bocado abichanados, mas estão filiados ao Partido Socialista  e têm lojas secretas no sul de Itália. Os pais fizeram fortuna com o Ambrosiano, pela graça de deus, e eram gente santa.
- Quero lá saber dessa gente. São todos uma cambada de maçónicos homossexuais e enfezados à procura de tacho. Quero que vocês se fodam, ouviram? Desapareçam-me da frente senão mato-vos!
Mal acabo de dizer isto, um deles puxa da arma e aponta-a à D. Eulália. Eu sabia que estes gajos não eram boa gente. O outro vem na minha direcção de arma em riste e espeta-me uma cronhada tão forte que juro ter visto deus a apontar-me o dedo.

Acordei num avião particular que mais parecia o Moulin Rouge. Ao meu lado a D. Eulália dormia. À minha frente, Harris e Jacob acariciavam um pequeno potro que relinchava de satisfação. Tentei levantar-me. Estava preso!
- Olá George – disse uma voz por detrás de mim -, encontramo-nos mais cedo do que julgavas.
Com um vestido de lantejoulas dourado e um faustoso bigode, Juarez movimentava-se pelo corredor do avião com uma elegância sublime. Os seus passos faziam-se ouvir à medida que os tacões altos batiam no chão do avião. Atrás de si, pequenas nuvens de fumo da sua altiva cigarrilha desvaneciam-se no espaço. Aquilo fez-me lembrar uma gaiola com araras que eu tivera em África. Fechei-as e não as deixei voar, agora estou a voar com elas.
A vida é mesmo assim, um acaso feito de putarias de todas as formas.








Capítulo 12

O avião levou-nos até ao México. Durante o resto da viagem aconteceu de tudo um pouco. Juarez manteve o mistério acerca do motivo pelo qual nos tinha raptado. Disse apenas que nos manteria vivos enquanto precisasse da D. Eulália, motivo que o levou a enviar Harris e Jacob para nos capturar. Eu era apenas um dano colateral de toda a operação, quem eles queriam era ela. Morreria assim que lhes apetecesse, e avisaram-me que a qualquer movimento suspeito não hesitariam em enfiar-me um balázio. Aquilo parece que não mas foi fodido de ouvir. Primeiro porque comecei a desconfiar da D. Eulália. Mas o que raio é que ela tinha a ver com tudo isto? Depois porque era ainda mais fodido ter a vida nas mãos de um travesti mexicano que assassinara a minha mulher. E depois porque o cabrão, enquanto falava, apalpava-me todo e deitava-me o fumo da cigarrilha para os olhos, enquanto à minha frente dois panascas rejubilavam com um potro que relinchava excitado. Como compreenderão, não é propriamente o sonho de todos os gajos acabar a vida numa situação destas.
A certa altura o telemóvel do Harris tocou. Era o Ratzinger a mexer os cordelinhos com o pessoal do FBI. Pelo que percebi estava a pedir-lhes para terem especial atenção com meia dúzia de bispos americanos que parece que estavam envolvidos em casos de pedofilia. Acho que os gajos sabiam umas merdas importantes que se tinham passado nos anos 70 e tinham-no ameaçado que se fossem dentro abriam a matraca. Sabem como é, quanto mais se mexe na merda pior ela cheira. De maneiras que a coisa passou-se assim, sem grandes novidades.
Aterramos numa pista privada no meio de um intenso arvoredo. A noite estava cerrada no berço dos cartéis mafiosos. A lua brilhava no céu, o Jacob soltou um primoroso peido que ecoou nos ares, o Harris riu-se e um mocho piou.
A D. Eulália continuava dormente. Devem ter-lhe dado qualquer coisa que a pôs drogada, mas sem divertimento.  Harris e Jacob encarregaram-se de a apear em braços. Eu estava entregue à besta travestida que seguia atrás de mim com uma arma apontada às minhas costas. Pelo menos eu queria acreditar que era uma arma. Era dura e estava encostada a mim numa zona que poderia estar à altura de outra coisa qualquer, bem entendido! Aquilo provocou-me uma terrível comichão na gaita. O potro e a tripulação ficaram a bordo. O primeiro dormia a sesta pós-coital, os segundos saltavam à corda.
Tinha que arranjar maneira de escapar dali. Afinal, eles matar-me-iam de qualquer das formas...



Capítulo 13

Seguíamos por um estreito caminho de terra batida à luz escassa da Lua. A densa folhagem atravessava-se no nosso caminho e dificultava-nos a marcha. Jacob e Harris seguiam à minha frente com a D. Eulália em braços. Eu seguia à frente do Juarez, que continuava de arma em riste e com um sorriso nos lábios. A cada 3 passos tropeçava. Percebia-se que não estava habituado aos tacões altos e às erecções em solo mexicano.
Chegámos a uma clareira onde encontramos 3 mariachis à volta de uma fogueira a tocar a la cucaracha. O Jacob propôs juntar-se-lhes para juntos recriarem a música, sendo ele o intérprete e propondo-se a cantar o tema em hebraico. Eles recusaram e seguimos o nosso caminho, não sem antes o Harris lhes ter lançado um feitiço que, segundo ele, os faria comer o próprio bigode sem a ajuda das mãos – este pessoal da maçonaria é mesmo assim, ou e como eles querem ou fodem meio mundo -, e assim foi. Os mariachis começaram a tentar trincar os bigodes com o maxilar inferior em movimentos estonteantes. Um deles já tinha alguma prática, e numa questão de segundos enfardou mais pêlo do que os homens do século XVIII ao fazerem os seus minetes às suas damas peludas.
A bicha travestida ordenou que seguíssemos o nosso caminho, e assim foi. Depois de cerca de 1 hora de caminho demos de frente com um portão de grades altas, ladeado por dois muros sem fim, que se perdiam no nevoeiro. Por entre as grades conseguia ver dois homens vestidos de negro. Tinham mesmo cara de quem tinha acabado de mandar uma foda e estavam envoltos num enternecedor abraço. Faziam promessas de amor eterno quando deram por nós. À direita, na coluna do muro, por cima da campainha, uma enorme placa em letras douradas informava: “ Foi nesta propriedade que, no ano de 2008, os governos europeus, o governo dos EUA, a maçonaria e os Bilderberg assinaram e viabilizaram a canalização de 500 milhões de dólares provenientes dos cartéis de droga mexicanos para a ajuda financeira aos bancos que sofreram com a crise.”
Aquilo emocionou-me. Enquanto subia o amplo caminho que nos levava a uma moradia principesca, dentro da propriedade, não pude deixar de me sentir orgulhoso por saber que estava a pisar o mesmo chão que outrora havia sido pisado pelos responsáveis máximos do futuro da humanidade. E quão nobres eram as suas intenções!
Perdido nestes pensamentos, dei por mim a acordar para a realidade. Cocei vigorosamente a gaita e reconsiderei o que havia pensado anteriormente: eu não podia abandonar a D. Eulália, mesmo suspeitando dela.
Tinha que saber o que se estava a passar. Precisava de descobrir os motivos que tinham levado o Juarez a matar a Christine, bem como apurar as causas do envolvimento da D. Eulália nesta merda toda.
Olhei para trás e os seguranças da propriedade haviam começado, de novo, a copular.


Capítulo 14

Ainda não tinha dado meia dúzia de passos quando voltei a virar-me para trás. Um guincho agudo ecoou no silêncio da noite – um dos seguranças acabara de atingir o orgasmo com uma pedra e ...(humm...piada brejeira com as palavras “atingir” e “orgasmo”- nota: de fraquinha qualidade; não voltar a usar) ... de atingir o orgasmo e exibia um rosto rubro e extasiado. Foram 3 ou 4 segundo intensos, a julgar pela expressão do homem que, pelo que vim a saber mais tarde, era grande apreciador do tema “I come to fast”, do Jon Lajoie. Arrumaram as pilas para dentro dos Armani negros que vestiam e começaram uma apaixonada discussão acerca da nova decoração da guarita.
Eu segui o meu caminho.
Entrei, para dentro, seguido de perto pelo Juarez. Na sua cara desenhara-se um sorriso obliquoso, motivado, por certo, pela cena a que acabara de assistir entre os seguranças. Sussurrou-me qualquer coisa ao ouvido e eu fiz de conta não perceber. Insistiu. Percebi a insistência. Soquei-o no sítio onde ele devia ter os tomates. Gemeu. Harris e Jacob voltaram-se de imediato, deixando a D. Eulália caída no chão. Amarraram-me pelos braços e levaram-me para uma divisão contígua ao hall onde nos encontrava-mos. O Jacob, nervoso, começou logo com os tiques do costume: primeiro começou por abanar as orelhas enquanto enfiava ininterruptamente o dedo mindinho na narina esquerda, revirando os olhos num movimento doentio enquanto tentava comer a própria língua. Depois virou-se para o Harris e começou a declamar Shakespeare em castelhano. O Harris, por sua vez, agarrou-se a mim a chorar e disse que queria morrer. Não morreu; nem o Jacob sabia castelhano. Juarez assistia a tudo com o mesmo sorriso de há instantes. Via-se que adorava ter o controlo de tudo, que gostava de mandar, de ver o espectáculo de cima e participar apenas quando lhe conviesse.
Um barulho ensurdecedor cortou esta cena. Outra virá: Dezassete cortesãs entraram na sala a dançar – uma delas era coxa, as outras 16 assobiavam. A que não assobiava e era coxa era também grande apreciadora de luta greco-romana, pelo que me deixei ficar na conversa com ela durante uma boa meia hora. Haris e Jacob amuaram; Juarez saltava à corda com duas das bailarinas – Nastácia e Filipovna – que numa outra história Idiota eram a mesma mulher, viviam em S. Petersburgo e tinham um feitio doentio. A D. Eulália tinha acordado entretanto e estava sentada no colo de uma holandesa - que era órfã desde os 7- a ensiná-la a tricotar. Ela sorria, mas depois desatou a chorar. Vim a saber mais tarde que as agulhas de tricô lhe recordaram a morte dos pais, que haviam falecido devido a uma overdose de heroína. A restante malta desta cena eram apenas figurantes, e nada de interessante sobre as suas vidas havia para contar. À excepção de uma delas, vá...que era vidente e percebia de suinicultura.

Havia drogas nesta sala, e o George desviou-se do seu percurso...